13 Oct 2010

O culto, o vício e a desculpa do trabalho

Teatro Nacional de Budapeste, Hungria
É comum encontrar em entrevistas de executivos, de todas as indústrias e nações, descrições de jornadas quotidianas e sistemáticas de trabalho de 14 horas / dia, de meses a fio sem finais de semana, de coordenarem "hands on" várias reuniões operacionais (e por vezes até de se gabarem de conseguirem coordenar várias reuniões ao mesmo tempo), de estarem online 24x7x365 com os seus terminais móveis, trocando mensagens com "n" interfaces a qualquer hora da noite ou madrugada, e uma multiplicidade de outros "sintomas" de uma doença que, socialmente aceite e até elogiada, se resume a uma dependência, a um comportamento obsessivo-compulsivo, a uma compensação por insuficiências pessoais, sociais e familiares e, acima de tudo, num dano para o seu accionista e para toda a companhia.

Um accionista ao nomear um CEO deverá esperar do mesmo que lidere, que inspire, que motive e que se rodeie de uma equipa de CxO (por si constítuida e liderada) que assegure a satisfação e optimização dos recursos, objectivos e expectativas dos vários "stakeholders" da companhia - clientes, accionistas, colaboradores, fornecedores, parceiros. Se que para tal aconteça é necessário assumir como banal e esperado ciclos de trabalho de 14 horas, o micro-management de "tudo e mais alguma coisa" e uma evangelização do "workaholism"... algo de muito errado se passa na companhia e com quem a lidera. Trabalhar em "economia de guerra" tem de ser sazonal e (muito) justificado. A banalização da "economia de guerra" é um desastre - e isto parece-me ser um axioma.

Na verdade creio existirem duas grandes facções deste "culto do muito trabalho": (i) os que fazem de conta que trabalham muito, mascarando de actividades produtivas e profissionais actividades tão diversas quanto jantares e almoços tão frequentes quanto prolongados, spas e ginásios, regatas, golf e seminários de "trends"; e (ii) os que se ocupam muito, repetida e crescentemente, com infinitas tarefas - apenas porque não conseguem delegar, porque, na verdade, preferem estar no trabalho, debaixo de um argumento socialmente aceite, do que efectivamente enfrentar o vazio que têm (porque têm!) na sua vida pessoal, social e familiar. Ou seja, temos no primeiro grupo os "pançudos da boa vida" e no segundo os "frustrados da vida". E temos, claro, quem consiga combinar ou alternar as duas facções.

Gerir uma companhia, seja ao nível do CEO ou do mais reduzido chefe-de-equipa é apenas uma tarefa de afectação eficiente de recursos escassos, sendo o recurso mais escasso de todos o tempo. Adjective-se o tempo, como fazem, e bem, os especialistas sociais e comportamentais, como "tempo de qualidade" ("quality time") - e, axiomaticamente, não existe tal dimensão de qualidade numa jornada de 14 horas, em mensagens trocadas de madrugada e em outros disparates de pseudo-stress.

Digo e repito, nos mais variados contextos em que exerci e exerço funções executivas, que alguém ter de trabalhar 14 horas sistematicamente, ou ter de estar "online" 24x7x365, apenas indica uma coisa - que algures, em si mesmo ou na organização em que se insere, algo, de sério e grave, não está a ser acautelado. Mas, a meu ver, o problema é mais sério do que a "mera" afectação de recursos ou gestão do tempo. É a desculpa social para um problema grave - do afastamento das pessoas de si mesmas, da qualidade de vida real e da permuta disto por uma palermice obsessiva-compulsiva, agarrados a Blackberrys e a gabaram-se de quem envia a mensagem mais tarde ou de qual esteve em mais reuniões no mesmo dia. Curiosamente ouve-se mais sobre estas métricas (de pseudo-esforço) do que efectivamente de coisas como crescimento efectivo (activos reais, valor acrescentado real), motivação dos colaboradores, inovação, desenvolvimento sustentado!

Tratem-se. Organizem-se. Vivam.