11 Aug 2016

Incêndios em Portugal - Mitos e Planos


Foto por Nelson Garrido, in Público, 11 de Agosto de 2016
Sendo a quase totalidade dos incêndios florestais registados em Portugal provocados por acção criminosa (deliberada ou negligente), falar de prevenção pela via do planeamento territorial e ordenamento florestal é simplesmente desconexo. Os incêndios não resultam de um mau ordenamento da floresta ou do território, mas pelo facto de alguém os provocar – e assim o provocará seja qual for o ordenamento (salvo se transformarmos a floresta em canteiros semi-pavimentados e com video-vigilância de infra-vermelho). Segundo números do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, entre 2003 e 2013, em média apenas cerca de 1,5% do total de incêndios estiverem associados a causas naturais – os demais 98,5% resultaram de acções deliberadas ou negligentes, ambas criminosas.

Falar de “ordenamento florestal” ou de “limpeza de matas e florestas” em zonas de parque natural (e.g., Serra do Gerês, Serra da Estrela, Serra de Sintra, Floresta Laurisilva da Madeira, etc) é desconexo - não se ordena uma floresta selvagem, nem se "limpa" um bosque – são ecossistemas que se exige sejam, por definição, selvagem e biologicamente entregues a si mesmos e assim naturalmente preservados e sem intervenção humana. Mais ainda, é tido por muitos especialistas que, mesmo fora de floresta selvagem, a limpeza das matas é pura e simplesmente, um mito, como expresso, por exemplo, pelo Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles em entrevista a Alexandra Correia à revista Visão nº 545 de 14 Agosto de 2003.

Falar de militares ou, pior, de reclusos a combater incêndios é simplesmente ridiculo ou, pior, negligente. Os mesmo não têm qualquer formação ou competência neste âmbito e iriam apenas resultar em mais problemas (a ideia de que podem ser "geridos" ou "controlados" junto com outras forças - essas sim especializadas - é surreal). Mais ainda, a noção popular de que a extinção de um incêndio florestal se resume ao uso de muitos homens e de muita água a atacar muito rapidamente a frente do fogo é uma noção infantil e desprovida da mais elementar formação ou conhecimento do que é (i.e., do que deve ser) o combate moderno a incêndios florestais. Idem sobre a pseudo-panaceia dos meios aéreos.

“Last but not least”, a cobertura mediática feita dos incêndios em Portugal é simplesmente pornográfica e sem qualquer perspectiva formativa ou responsável. Cultiva-se o "gore" das imagens, o drama do choro e das palavras e expressões de pânico e fadiga, semeia-se o "cliché" e, pelo meio, serve de arma de arremesso político. Triste.

11 Jan 2016

Barramentos

No Reino Unido, tal como em Portugal, existem procedimentos que levam a que possa ser solicitado aos fornecedores de acesso Internet (ISP, Internet Service Providers) o barramento de acesso a determinados sites, por alegação, entre outros possíveis delitos, de distribuição de material protegido por direito de autor, vulgarmente designado por "pirataria". Este barramento é feito, no Reino Unido, exclusivamente em dependência de uma ordem judicial - "(...) BT [ British Telecom] will only block access to websites engaged in copyright or trademark infringement when ordered by a court to do so.(...)" . Mais ainda, tal é reforçado, sobremaneira, pela designada "Emenda 138" da legislação europeia, ref. directiva 2002 / 21 / EC,  que indica, explicitamente, que nenhum barramento de acesso a informação pode ter lugar sem intervenção judicial.

Photo by and (c) 2007 Derek Ramsey | vai Wikimedia CommonsEm Portugal os barramentos são solicitados aos fornecedores de acesso a pedido da Inspecção Geral das Actividades Culturais (IGAC), uma entidade oficial da República, que, desde 2011, está sob tutela directa da Presidência do Conselho de Ministros. O IGAC rege-se, desde 2012 e actualmente, pelo Decreto Regulamentar n.º 43/2012, de 25 de Maio que, no seu artigo 2.º, alínea b), aponta como uma das missões e atribuições: "(...) Exercer a atividade de supervisão, fiscalização e monitorização na área do direito de autor, dos direitos conexos, dos espetáculos de natureza artística e dos recintos fixos destinados à sua realização; (...)" .

Estes pedidos de barramento são feitos tendo por base não uma acção directa da IGAC, como é estipulado ser sua missão, mas através de listas de sites a barrar que são produzidas por uma associação, o Movimento Cívico Anti Pirataria na Internet (MAPINET) . Mais ainda, a implementação de tal barramento decorre sem qualquer intervenção ou ordem judicial.

Este recurso a uma associação foi estabelecido através de um "memo" de entendimento, assinado a 30 de Julho de 2015, no CCB, com a presença do secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, e do ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro.

Segundo a IGAC este "memo" de entendimento, formalmente entitulado "Memorando de Entendimento - Proteção de Direito de Autor e Conexos em Ambiente Digital" foi assinado, pela "(...) Inspeção-Geral das Atividades Culturais, pela Direção-Geral do Consumidor, pela Associação dos Operadores de Telecomunicações em representação dos seus associados, pelo Movimento Cívico Anti Pirataria na Internet em representação dos seus associados (Associação Fonográfica Portuguesa; Associação Portuguesa de Editores e Livreiros; Associação Portuguesa de Imprensa; Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos; Associação Portuguesa de Software; Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais; Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas, Intérpretes ou Executantes; Associação para a Gestão de Direitos de Autor, Produtores e Editores; e Gestão de Conteúdos dos Media), pela Associação Portuguesa das Agências de Publicidade, Comunicação e Marketing, pela Associação Portuguesa das Agências de Meios, pela Associação Portuguesa de Anunciantes, pela Associação dns.pt e por associações de defesa dos consumidores. (...)"

Estranha-se como pode a IGAC, uma entidade oficial da República, delegar, por "proxy", numa associação (seja ela qual for, ou composta por quem quer que seja) a produção de listas que determinam, sem intervenção judicial, o barramento de sites que os fornecedores de acesso Internet devem implementar junto dos seus clientes.

Consultando o site da associação MAPINET encontra-se, na respectiva secção de notícias uma referência a um artigo do Tek SAPO, assinado por Fátima Caçador, onde é indicada a metodologia (?) usada na produção das listas que ditam o barramento de sites: "(...) O critério base para que os sites sejam bloqueados é a identificação de, pelo menos, 500 conteúdos ilegais, ou de dois terços do repositório com obras piratas (...)" . Como pode uma associação determinar a legalidade do que quer que seja? Não é essa uma competência exclusiva do sistema judicial? E, mais grave, como pode uma entidade tutelada pela Presidência do Conselho de Ministros usar estes recursos para forçar o barramento de determinados sites? E porquê 500 conteúdos e não 50 ou 5000? E qual é a definição unitária de conteúdo? Tantas perguntas além destas, tantas...

Mais ainda, tecnicamente o barramento é feito tendo por base o impedimento da resolução de nomes nos servidores de DNS de cada fornecedor de acesso. É uma trivialidade alterar nas configurações de qualquer terminal de acesso os servidores de DNS de um determinado fornecedor de acesso por outros, como sejam, por exemplo os servidores públicos e gratuitos do Google, tornado inútil, e até patético, o esforço e evangelização moral e económica desta associação e desta missão.

Tenho o maior respeito pela protecção de direito de autor, até porque sou, em fotografia, em video e em texto, criador e autor há mais de 2 décadas e meia (publiquei pela primeira vez, nos idos de 1989, no Diário de Notícias). Mas não posso compreender este processo, em que, repito, uma entidade da República usa, por "proxy", uma associação para ditar, sem qualquer validação judicial e sem uma metodologia pública e auditável, os barramentos que os fornecedores de acesso internet devem implementar junto dos seus clientes.





Os "media" e o heroísmo por regulamento

Paulo "Speedy" Gonçalves, um piloto português de moto, campeão do mundo de Motocross (FIM) em 2013, a competir pela Honda na edição de 2016 da mítica prova Dakar (que na edição de 2015 terminou em 2.º lugar), depara, no decurso da sétima etapa, a 9 de Janeiro, ligando Uyuni (Bolívia) a Salta (Argentina), em que partia como líder da classe geral de motos, com um acidente de outro piloto de moto, Matthias "Hiasi" Walkner, da KTM, austríaco e campeão do mundo de Motocross (MX3) em 2012 e em 2015 (FIM, Cross-Country).


O piloto português ao passar pelo ponto do acidente interrompe a sua corrida, estaciona a sua moto, e durante cerca de 11 minutos (10 minutos e 53 segundos em medição oficial) acompanhou aquele outro piloto, deitado no chão, com fortes dores, decorrentes de fracturas em resultado de uma queda, até à chegada da assistência médica de emergência da organização da prova.

Numa peça da TSF encontra-se a passagem "(...) A organização decidiu repor ao piloto português da Honda o tempo perdido na assistência (...)"; e o mesmo é indicado por uma outra peça do Diário de Notícias "(...) Organização decidiu repor ao piloto português da Honda o tempo perdido na assistência a Walkner (...)"; temos ainda numa peça do Correio da Manhã a referência a "(...) correndo o risco de ser prejudicado no tempo (...)"

Nos "media" em geral e nas redes sociais surgiram de imediato os títulos de herói, de extraordinário exemplo solidário, de prioridade altruísta ao suporte humano em lugar da competição, que colocou em risco a liderança de forma desinteressada em prol da assistência, e afins.


Da leitura do regulamento Dakar (edição 2016, âmbito "motos", página 34, capítulo 24P2) está estipulado que não só a assistência de um piloto a outro em caso de acidente (de que resulte perigo fisico) é obrigatória (e que o mesmo será sancionado se assim não o fizer), como está perfeitamente definida a dedução do tempo gasto para não penalizar essa assistência. O regulamento detalha o procedimento a seguir nos equipamentos de "tracking" e comunicações de prova (GPS / Sentinel / Iritrack) para sinalizar o acidente, solicitar apoio e demarcar temporalmente o período entre o inicio e final da assistência - por forma a que o tempo assim medido possa ser deduzido ao tempo do piloto a prestar assistência.

A referência pelos "media" a uma "decisão da organização" surge como se tal fosse uma decisão anormal por recompensa solidária, decorrente de um acto heróico ou por reconhecimento de uma acção extraordinária, quando tal decorre, apenas e só do estipulado, de forma automática, e muito bem, pelo regulamento da prova. Na verdade não se trata de qualquer decisão. Mas da aplicação, linear e transparente, do regulamento. E, mais ainda, recorda-se e releva-se, que a assistência é obrigatória - e que a não ser prestada acarreta sanções para o piloto (conforme alínea 4 do capítulo 24P2 do regulamento). 

Na sua página da rede social Facebook o próprio piloto português rejeita o tratamento de herói e nota "(...) Fiz aquilo que me competia. O Dakar é uma aventura de muito risco, de muito sacrifício, damos tudo por tudo ao longo de vários dias, milhares de quilómetros, e o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais que qualquer vitória, sem ela não vencemos (...)".

Os "media" procuram notícia com "chama" e "sensação" e as redes sociais vivem de exagero - sejam demónios ou heróis, ambos feitos e desfeitos na vertigem do emocional e do imediato, na hipérbole e na exaltação. Em nenhuma "peça" dos "media" encontrei qualquer referência ao regulamento e às obrigatoriedades e deduções claramente expressas no mesmo. E, creio, nem tanto por tal retirar o conceito de herói que os títulos precisam. Genuinamente ninguém se terá dado ao trabalho de saber "como é". Investigar e cruzar fontes primárias são coisa de velhos.

O piloto português comportou-se de forma normal, correcta e dentro do cumprimento e cabimento do regulamento. Não é um herói, nem pretende ser.