11 Jan 2016

Os "media" e o heroísmo por regulamento

Paulo "Speedy" Gonçalves, um piloto português de moto, campeão do mundo de Motocross (FIM) em 2013, a competir pela Honda na edição de 2016 da mítica prova Dakar (que na edição de 2015 terminou em 2.º lugar), depara, no decurso da sétima etapa, a 9 de Janeiro, ligando Uyuni (Bolívia) a Salta (Argentina), em que partia como líder da classe geral de motos, com um acidente de outro piloto de moto, Matthias "Hiasi" Walkner, da KTM, austríaco e campeão do mundo de Motocross (MX3) em 2012 e em 2015 (FIM, Cross-Country).


O piloto português ao passar pelo ponto do acidente interrompe a sua corrida, estaciona a sua moto, e durante cerca de 11 minutos (10 minutos e 53 segundos em medição oficial) acompanhou aquele outro piloto, deitado no chão, com fortes dores, decorrentes de fracturas em resultado de uma queda, até à chegada da assistência médica de emergência da organização da prova.

Numa peça da TSF encontra-se a passagem "(...) A organização decidiu repor ao piloto português da Honda o tempo perdido na assistência (...)"; e o mesmo é indicado por uma outra peça do Diário de Notícias "(...) Organização decidiu repor ao piloto português da Honda o tempo perdido na assistência a Walkner (...)"; temos ainda numa peça do Correio da Manhã a referência a "(...) correndo o risco de ser prejudicado no tempo (...)"

Nos "media" em geral e nas redes sociais surgiram de imediato os títulos de herói, de extraordinário exemplo solidário, de prioridade altruísta ao suporte humano em lugar da competição, que colocou em risco a liderança de forma desinteressada em prol da assistência, e afins.


Da leitura do regulamento Dakar (edição 2016, âmbito "motos", página 34, capítulo 24P2) está estipulado que não só a assistência de um piloto a outro em caso de acidente (de que resulte perigo fisico) é obrigatória (e que o mesmo será sancionado se assim não o fizer), como está perfeitamente definida a dedução do tempo gasto para não penalizar essa assistência. O regulamento detalha o procedimento a seguir nos equipamentos de "tracking" e comunicações de prova (GPS / Sentinel / Iritrack) para sinalizar o acidente, solicitar apoio e demarcar temporalmente o período entre o inicio e final da assistência - por forma a que o tempo assim medido possa ser deduzido ao tempo do piloto a prestar assistência.

A referência pelos "media" a uma "decisão da organização" surge como se tal fosse uma decisão anormal por recompensa solidária, decorrente de um acto heróico ou por reconhecimento de uma acção extraordinária, quando tal decorre, apenas e só do estipulado, de forma automática, e muito bem, pelo regulamento da prova. Na verdade não se trata de qualquer decisão. Mas da aplicação, linear e transparente, do regulamento. E, mais ainda, recorda-se e releva-se, que a assistência é obrigatória - e que a não ser prestada acarreta sanções para o piloto (conforme alínea 4 do capítulo 24P2 do regulamento). 

Na sua página da rede social Facebook o próprio piloto português rejeita o tratamento de herói e nota "(...) Fiz aquilo que me competia. O Dakar é uma aventura de muito risco, de muito sacrifício, damos tudo por tudo ao longo de vários dias, milhares de quilómetros, e o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais que qualquer vitória, sem ela não vencemos (...)".

Os "media" procuram notícia com "chama" e "sensação" e as redes sociais vivem de exagero - sejam demónios ou heróis, ambos feitos e desfeitos na vertigem do emocional e do imediato, na hipérbole e na exaltação. Em nenhuma "peça" dos "media" encontrei qualquer referência ao regulamento e às obrigatoriedades e deduções claramente expressas no mesmo. E, creio, nem tanto por tal retirar o conceito de herói que os títulos precisam. Genuinamente ninguém se terá dado ao trabalho de saber "como é". Investigar e cruzar fontes primárias são coisa de velhos.

O piloto português comportou-se de forma normal, correcta e dentro do cumprimento e cabimento do regulamento. Não é um herói, nem pretende ser. 





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